quarta-feira, 24 de junho de 2009

Crônica-Raimundo Sodré rsodrexapuri@yahoo.com.br

Meu amigo diplomata

Eu sempre fui comunista, e daqueles radicais, de não usar calça ‘ustop’, de achar que a Sibéria é uma estação de inverno e de dividir a minguada ração de pão-doce-com-garapa com o companheiro naqueles congressos estudantis paupérrimos. Sempre quis a liberdade, a igualdade e a fraternidade. E foi assim, à francesa, que cheguei, um dia a ser sindicalista (aliás, não gosto desta adjetivação. Prefiro a locução ‘líder sindical’. ‘Sindicalista’ parece com ‘seringalista’, que era o barão dominador nas relações impostas pela exploração da borracha. Uma peça chave no sistema extrativista cuja lembrança só me volta tristezas e mágoas).

Enquanto líder sindical, então, acumulei experiências que flutuaram entre a bizarrice e a mais agradável surpresa.

Quanto aos absurdos, prefiro guardar as minhas impressões para uma horinha mais aprumada na paz.

Agora as surpresas agradáveis cabem direitinho aqui:

Era um momento em que estávamos com a corda toda. Como se dizia na época: formulando, articulando, encaminhando.

Soubemos então, que o presidente da Vale do Rio Doce estaria em Belém para fazer a entrega de um piano que havia sido restaurado com recursos da empresa. Era a chance de um téti-à-téti com o homi.

No dia da cerimônia, estávamos lá daquele jeito. Carro som, discursos acalorados, motivos e coragem. Os assessores, por isso, entraram em ação para as combinas, as negociações. Entre um colóquio e outro, arriou um toró daqueles, mas nós não arredamos o pé. Ao ver tamanha obstinação, um dos negociadores se compadeceu e garantiu o nosso encontro com o presidente da Vale, contanto que parássemos o barulho e permitíssemos os preparos para o show do Artur Moreira Lima. Concordamos.

Alguns minutos após a chegada do presidente, fomos autorizados a entrar no complexo de Santo Alexandre para um encontro reservado. Houve, porém, de passarmos pelo salão onde estavam os convidados. Foi por certo, uma cena inusitada. Estávamos completamente molhados, pingando, em camisas de manga, tênis. O nosso saudoso advogado, Dr. Geraldo, era o único que ostentava alguma elegância, alinhado em paletó e gravata. Completamente encharcado, no entanto.

O clima, porém, amenizou bastante quando nos encontramos com o Dr. Jório Dauster. O embaixador era a personificação da educação e da urbanidade. Nos cumprimentou a todos, inclusive com abraços discretos, mesmo sob o risco de respingos. Na hora do ‘vamos ver’, deixei de lado a missão sindical e tietei sem acanhamentos. Falei que era um prazer para mim, estar diante do intelectual responsável pela tradução de Lolita, um dos mais belos e polêmicos romances de Vladimir Nabokov e parari, parará. Rasguei a maior seda. Ele recebeu com surpresa aquela investida, mas metabolizou com diplomacia os meus chiliquitos de fã, e logo em seguida se animou em comentar outros trabalhos que ele tinha feito sobre a obra do escritor russo. Mas o chove-não-me-molha literário durou pouco. Tínhamos uma missão. Entreguei a carta ao diplomata-presidente da Vale e nos despedimos com a esperança de que ele um dia nos responderia sobre as nossas mais nobres, justas e vastas reivindicações.

O tempo passou. Os sonhos sindicais se perderam mais em bizarrices do que em surpresas agradáveis.

Dias depois daquele encontro, recebi uma encomenda. Era um exemplar do romance Machenka, enviado e autografado pelo Dr. Jório Dauster, com um texto amigo e respeitoso na dedicatória.

Sempre fui comunista. Mas, também, sempre admirei os bons homens. E de uns tempos pra cá, passei a desconfiar das minhas certezas sobre a Sibéria.

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