Houve um tempo em que tratamento para rasgadura, desmentidura e deslocação era andiroba, cabacinha e a milagrosa reza do Seu Sabazinho. Pra espinhela caída, então, não tinha outro.
(Era bater e ver, embora até hoje eu não entenda muito bem o que seja espinhela, não saiba a sua exata localização e não ouse especular sobre o seu real status anatômico. Sei apenas que dor no peito e falta de respiração eram sintomas do descaminho malsão da espinhela e que parte da cura vinha, também, do poderoso emplasto Sabiá, todo furadinho).
Certa vez, num dos meus atrevimentos pelos campos do Areal, peguei um cacete dum moleque que rebolei lá longe, dentro de uma lagoinha que tinha até peixinho. E quede que eu me levantei. Não voltei mais pro jogo. Do meu pé vinha um zunido dizendo não (é verdade, nessas horas a gente não sente dor. Ocorre uma espécie de arrebatamento, a cabeça fica longe e a gente só percebe aquela ondinha circulando o nosso enfastiado mundo. O que nos cabe é aquele embaraço sonoro que se assemelha ao barulho que vem do poste de energia, ali, perto do transformador. Um longínquo, esquisito e eletrizado zuuumm).
Voltei caxingando para casa e no outro dia fui bater com o Seu Sabazinho. O pé, por acolá, bem inchado e dolorido.
Sentei num banquinho e esperei apreensivo pelo rezador. Quando ele apareceu, trazia na mão um ramo de Vassourinha e uma combuquinha sortida de um óleo acetinado. Untou as mãos e iniciou uma ladainha numa frequência tal que não podia ser percebida pelo ouvido humano (desde então, alimento a vã missão de decifrar aqueles dizeres. Percorri mundos atrás de alguém que me reproduzisse, pelo menos em parte, as orações que são proferidas pelos benzedores. Sem sucesso. Ninguém abre. O dom da benzeção é uma herança guardada a sete chaves e ninguém dá um pio sobre este ou aquele versículo. O que é garantido é que o Pai Nosso não falta, sempre tem e depois, é um Bzzzzzz baixinho e misterioso).
Em poucas ocasiões da minha vida, senti tanta dor. Naquele dia, acho que Seu Sabazinho não estava inspirado. Havia um momento desolador, aquele em que ele imprimia toda a sua fé. Dispensava o raminho (que era o meu alento, que protagonizava os melhores momentos da sessão) e lançava as mãos vigorosas sobre o nervinho inflamado do meu tornozelo. E apertava, e espremia e esticava, e comprimia...E a dor vinha terrível e diretamente proporcional ao fervor de um Sabazinho estranhamente excitado (quanto mais ele se elevava aos céus, mais eu via estrelas). Mas quando saí de lá, caminhei aliviado o estirão de pontes que desenhava a baixada da Pedreira.
As rezas e benzeções não se limitam aos males físicos produzidos por encontrões deseducados nas peladas do subúrbio. Estendem-se aos males da alma. Meus pequenos, quando quedavam-se ao mau-olhado, era rapidola que a gente procurava a vovó Cocota da Passagem Bom Jesus. Não havia esmorecimento ou panemice que vingasse ante o raminho de Arruda e das silenciosas preces da vozinha. Houve, uma vez, d’eu executar uma prescrição da vovó Cocota que me fez garimpar até uma fé adicional (porque duvidei da receita). Tive que passar meu menino pelo meio das pernas de frente para uma porta. Passava de um lado, despassava do outro. Foram umas quantas sessões desta desobriga para que o menino desamofinasse. Tava o puro quebranto, o pequeno. Mas, sarou.
Agora, a história é diferente. Por qualquer coisinha os meninos recorrem à medicina tradicional e, em alguns casos de entristecimento, até à orientação psicológica.
Antes, os bons benzedeiros eram a nossa valência. A nossa salvação.
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