segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Crônica da semana-Raimundo Sodré

O Menino da Catedral


Há várias versões para a história. Eu conheço duas. A opção por uma ou por outra, dependia do tipo de ‘mal-criação’ que eu fazia para a mamãe.
uma diz que o menino, por mostrar a língua pra mãe, saiu do ar, ficou durinho da silva, pra sempre, com a língua estendida a mais de palmo, além da boca. A outra é a da vassoura. O menino teria levantado a vassoura Alvorada, contra a mãe e...puft! Virou ‘estalta’ de carne e osso. As duas me impressionam.
Em ambos os casos, o mesmo desfecho: o menino mal’ouvido, mumificado, foi confinado atrás da porta da Sé. Dali, morto em pé, jamais sairá e a sua história será contada a qualquer tempo para servir de exemplo aos moleques mais saidinhos.
Eu conto esta história pros meus meninos e advirto: “olha, não dá a língua pra mãe, não faz menção de bater no pai, porque Papai do Céu ralha!” E eles nem ‘seu souza’. Não acreditam e esmeram-se nas peraltices.
Agora essa semana, calhou d’eu ter a oportunidade de pôr esta história em pratos limpos: estava a fim de dar uma volta pelo complexo Feliz Lusitânia, mas como não tinha o numerário para o roteiro completo que inclui o prédio do antigo arcebispado e do Ipar e ainda a igreja de Santo Alexandre, atravessei e fui a um ansiado reencontro com a Catedral reformada e formosíssima.
Estava meio tenso, admito. Volteei pelo interior do templo tentando assimilar as belezas da construção medieval. Tentando relaxar. Procurando disfarçar o real motivo daquela visita.
Na saída, estanquei à porta. O coração no peito “tucotucotuco”, acelerado, acreditando que no vão entre a pesada porta e a parede fria da igreja, sutilmente ocultado por um detalhe arquitetônico, espreitava ereto, o espectro do menino mal-criado, com a língua esticada pra fora. O Menino da Catedral, entidade mítica e argumento poderosíssimo de minha mãe nas horas de me passar um pungente carão.
Aproximei-me da porta. Tomei fôlego, e num repente, desloquei a pesada peça de madeira... E tudo se fez em mistério (pois o insondável, o inexplicável, o segredo que floresce do imaginário popular... a lenda reluta em se revelar).
Não sei, exatamente, o que aconteceu comigo naquele instante. Só sei que, quando dei por mim, havia um funcionário da igreja me amparando e me ajudando a levantar do banco. Estava meio alerdado e um suor frio brotava generoso da palma das minhas mãos e das frontes. “Está tudo bem?”, perguntou o funcionário. Não respondi e me apressei em ganhar a rua. Antes, porém, dei que a pesada porta estava totalmente aberta, encostada na parede lateral, e escondendo aquele discreto vão, como de costume.
Só fui tornar, lá embaixo, aos pés do Senhor dos Navegantes, na Praça do Pescador. A brisa úmida da baía veio ao meu encontro e me devolveu os sentidos. E foi assim, na mais completa lucidez, que a imagem do menino foi se revelando para mim: o corpo extraordinariamente preservado, os olhos arregalados de medo (ou de arrependimento, não sei), a tez entristecida de morto-vivo. O menino desobediente, com a língua estirada pra fora, a mais de palmo e as mãos a sustentar no ar, uma ameaçadora vassoura. Teso, teso, o menino.
A imagem era nítida na minha mente. O vento vinha da baía e trazia a figura do Menino da Catedral entesado por ter mostrado a língua para a mãe. Condenado ao silêncio e à solidão de um compartimento frio detrás da porta Sé. Ele, o personagem de uma história, indubitavelmente, verdadeira.
Eu falo pros meus meninos: “olha, não põe a língua pra mãe, não faz gracejos de bater no pai, que Papai do Céu ralha...”, mas eles, nem aí. Não acreditam.
Eu acredito.

Um comentário:

Gabriel disse...

I é veldade memo esse troço do muleque estaltua na Sé. Até hoje tenho medo.