domingo, 8 de novembro de 2009

Unforgetêibol

Crônica da semana - Raimundo Sodré - rsodrexapuri@yahoo.com.br

Antigamente, havia uma plaquinha nos ônibus alertando “fale com o motorista somente o indispensável”. Passei anos da minha vida admitindo que aquela mensagem queria dizer que só quem podia falar com o motorista era o pai ou a mãe da gente (confundia ‘indispensável’ com ‘responsável’). Por isso jamais puxei um isso de prosa com os ‘choferes’ de ônibus. Até que... meus meninos nasceram e me credenciaram. Agora arrisco um bom dia/boa tarde e um filho disso ou filho daquilo (quando eles queimam a parada, metem o pé no freio pra arrumar a carga ou quando arrancam enquanto a gente ainda está descendo).
Outra armadilha discursiva que me ficou no cocuruto um montão de tempo foi o atalho fonético que minha mãe arrumou para pronunciar, de modo coerente (para honrar o marketing linguístico) e elegante (como reivindicava o produto) o nome de um perfume, à época, recém-lançado no mercado.
(Tenho que abrir este parêntese para falar sobre a atividade econômica de minha mãe que nos garantiu o de comer durante um bocado de tempo, mesmo que em detrimento de um ou outro pedido não entregue por falta de numerário para resgatar a ‘caixa’.
Minha mãe vendia de um tudo. Não havia lastro para a fidelidade comercial. Todo santo dia, juntava uns quantos ‘catálagos’ da Avon, Christian Gray, Collins, Hermes, uns mostruários do mais requintado Michelin; batonzinho para demonstração, que ela vendia a preços simbólicos e o irrevogável buquê de flores de plástico que ela mesma talhava, dobrava e cerzia com zelo e precisão e que fazia o maior sucesso. Colocava uma sandalinha baixa e ganhava o mundo da Pedreira, que se exibia, naqueles dias, em baixadas alagadas e modestos cerqueiros de terra firme, visitando e anotando os pedidos dos solidários fregueses. Mais solidários do que fregueses.
Quando Deus ajudava e liberava a ‘caixa’, mamãe espalhava os cosméticos no chão, subscrevia os destinatários nos saquinhos e a gente ia separando os produtos (desde ali cultivo uma indissolúvel bronca do mais refinado perfume ao popular creme Sheen, em função daquelas radicalmente odoríficas sessões de distribuição per capita. Por causa daqueles dias, até o mais singelo respingo de Leite de Rosas ou do doméstico patchouli, me deixa como herança uma hedionda e insuportável dor de cabeça).
Dessa vez, havia um lançamento na parada. No catálogo, a ilustração do perfume o definia com o nome de Unforgetable. Minha mãe observou, avaliou e concluiu que um perfume que chegava com uma fama danada, não poderia ter um nome com tão pouco glamour. Algo de atraente deveria ser providenciado para certificá-lo como chique e emblemático. Uma maquiagem que passava, necessariamente, pela pronúncia. Mamãe então, buscou na ilusão fonética, um argumento para superativar aquele produto. Coisa de marketing, sabe. A partir daquele dia, ela dotou aquele nome de um som mais, digamos assim, globalizado. Batizou-o de ‘unforgetêibol’ (e ainda justificou, resgatando um inglês perdido lá na Escola Normal: ora, table não é mesa em inglês, palavra que a gente pronuncia têibol? Então: unforgetêibol). Foi o lance mais eficaz de aproximação com o anglicismo, por mim percebido, nos estertores da insubmissa década de 1980.
E assim foi durante eras e eras. Até que um dia, o Fantástico exibiu um clipe com a Natalie Cole. Vi na legenda o título da música que ela cantava: ‘Unforgetable’. Reparei bem na pronúncia da moça. Ela falava algo como ‘anfoguerebol’ (que me perdoem pela heresia fonética). Pensei comigo: mas não é o mesmo unforgetêibol da mamãe? E era.
Hoje, exulto remissivamente: mas a mamãe, hein!

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