sábado, 10 de outubro de 2009

Meu guri - Crônica da semana - Raimundo Sodré

A mãe, quando entrevistada, disse que para ela, o menino estava indo normalmente ao colégio. Dia desses, é que foi saber das aprontações do filho (quando já havia mais de três meses que o garoto sequer passava pela frente da escola. Nem para a merenda ele se abalava). Ao perceber que o menino andava metido com uma camaradagem barra-pesada, a mãe deu uma prensa. Ele adiantou que tinha uma necessidade urgente (uma roupa nova, um tênis, um celular que blutufa, coisas com este status de precisão), que faria somente mais um assalto e depois abandonaria aquela vida.
Naquele dia, subiu no ônibus trajando o uniforme da escola (o que , em tese, o isentava de suspeitas mais severas) e, de posse de uma faca daquelas domésticas com cabo de madeira, anunciou o assalto. O que aconteceu depois foi uma cena de natureza incontestavelmente primitiva, imponderavelmente selvagem.
(Na internet, leio na íntegra, a descrição do linchamento do adolescente.
E lembro agora que quando vim aqui para a coluna, meu amigo me disse: “vais escrever na coluna Bom Dia. Vais começar o dia dos leitores. Alto astral, se possível. Inspiração, bons fluidos, bom humor e otimismo. Não me vem com choradeira, cara, o nome da coluna é Bom Dia”! Menti e falei “tá”. Agora, enquanto leio sobre a morte daquele guri, as lágrimas não me deixam escrever. Caem sobre a concavidade da lente dos meus óculos, embaçam a visão, despencam sobre as reentrâncias do teclado. Quanto mais adentro na história do menino, o meu coração se agita, minha garganta geme e meu espírito sofre. Ah, desculpem-me, leitores. Perdoe-me, querido Edir Gaya, se estou trairando, se neste sábado do Círio, subverto a nossa combina, mas não resisto a este golpe. O meu ‘eu’ salesiano me volta cobrando - e eu sei que aqueles tempos de salesiano também te cobram, Gaya - uma dedicação maior aos jovens. Me vem à lembrança aquele painel que o padre Lourenço tinha na sala dele com as fotos dos garotos que ele ‘perdeu’. Quantos daqueles jovens, nós conhecíamos. Jogavam spiribol no oratório, eram colegas lá da oitava, discretos e retraídos membros da “Perseverança” ou, simplesmente, meninos que rompiam, sem cerimônia nenhuma, a fronteira entre a Sacramenta e a Pedreira pelas estivas instáveis da Pedro Miranda, escondido das mães.
Resgato lá dos idos de oitenta e poucos a tia Tiba com o seu trabalho comunitário na passagem H e a legião de garotos que ela acompanhou durante tantos anos. Torno à República do Pequeno Vendedor, à Noemy, aos meninos da ‘Toca do Morcego’ e àquele restaurante que funcionava lá no Carmo. Penso na mãe do garoto. Porque às vezes a gente acha que estes meninos que aparecem nas manchetes de jornais não têm mãe. Mas têm sim e sofrem muito mais que qualquer um de nós que se compadece intempestivamente.
Sei que tenho uma responsa aqui. Alguém pode pensar “éraste, o Sodré tá sendo passional. Poderia contribuir com uma versão racional para esta história”. Verdade. Poderia dar um teco no governo, na polícia, no ECA... Perdi amigo-irmão naquela área. Tenho motivos para aprofundar o tema. Mas não hoje. Antes preciso cobrar de mim mesmo que tenho meus pequenos que moram e estudam em Belém, enquanto eu mato um leão por dia como operário aqui em Barcarena; e que saudade me vem deles agora, uma vontade de abraçá-los, acarinhá-los; uma vontade de encontrá-los para dizer a eles que eu os amo e que vou lutar por eles o tanto que possa...
Agora, para abrandar este desassossego que sinto, rogo à Mãe de Deus, mesmo que seja entre parêntesis, que olhe pelos nossos ‘guris’, os guarde e os proteja).

Um comentário:

José Maria disse...

Lembro quando fui voluntário da República do pequeno vendedor.Uma experiência marcante . Vi muitos garotos em estado crítico.Mas pude ver muitos desses mesmos adolescentes sairem da marginalidade e se transformarem em cidadãos. Um trabalho de formiguinha(o da República) se comparado com a grandeza do problema, mas cada um de nós contribuiu para melhorar um pouco a vida de vários garotos e garotas.