Era um ano antigo de uma década violada por violas, luas, torturas e guerras. Belém. Um daqueles dias quentes e abafados da minha querida Belém. Céu azul azul. Tudo parado, sem vento, sem vida. Apenas o padeiro passa silencioso, pedalando a sua bicicleta de padeiro. Sem alarde o café com pão da tarde. Alguém interrompe o cerzido monótono de esquina e toma lugar à mesa em meio a uma guerra da petizada pelo direito ao cuí do pão.
Tarde transcendente. Quente. Chata. Parada. Ardor cadente. Belém.
“Alô, alô, interior, quem mandou foi fulano...”. Hora do “café-com-pão-manteiga-não-que-engorda”. Do rádio, uma voz espalhada pela planície entorpecida, se comunica com o ‘interlan’ e sugere dietas.
O menino arruma três, quatro petecas no cós puído do short e lança-se ao mormaço da rua. Não foi à escola hoje. É dia de Educação Física e ele não tem o uniforme completo. Faltam-lhe as listras no short azul-marinho. A mãe deve explicar à professora que não achou short com listras no armarinho. Não vai para a aula enquanto a mãe não for se explicar com a ‘fessora’.
Logo agora que ensaia um canto e uma coreografia para o aniversário da escola (nos movimentos com o bastão, sempre erra a parte dele). Não foi à escola. São três horas da tarde e da agonia. Nem sinal daquela chuvinha (só aqui na minha janela para o passado é que ela existe). O canto para a festa: “sou soldado valente/e também sou gentil/pode crer minha gente/ eu nasci no Brasil”. E o meu short não tem listras, viu, completava ele.
Calor. Os colegas não apareceram na tarde modorrenta. Têm shorts com listras. Foram para a escola. Está tão só! Inventa um jogo de petecas consigo mesmo. Recita as regras: do mal. Fedeu-morreu. Escapole-deixa. Palmo-mata. Não dou mão e não tem ispa. Cria um impasse indissolúvel. Fico-e-não-dou-fico-pra-sair-do-lugar. É escabriado. Desiste do jogo. Precisa de um rumo para a sua tarde. Não foi à escola. Short sem listras. Tão só!
Hoje tem arraial! Ele sabe chegar ao largo. É perto do trabalho da mãe. Cadê a minha camisa amarela? A avó tá dormindo. Se acorda é logo que ralha. Ei, motorista, para no canto da Aveirense.
A mãe toma um susto quando o vê por ali. “O que foi, menino?”. Nada não, mãe dele. Não foi à escola por cauda daquela história, sabe. Estava tão sozinho. Sente que é bom estar contigo, mãe. Na solidão, te procura, mãe. Na tarde calorenta e vazia quer a mãe. Sentiu uma saudade dolorida. Saudade da mãe. Sabe aonde te encontrar, por isso veio...Deixa, mãe, deixa o menino combater a letargia da tarde.
Um sorriso orgulhoso brota dos lábios doces da mãe. Meu pequenino, já enfrenta as inquietudes de uma tarde deserta.
A mãe diminui o saldo do mês e arruma umas moedas no caixa, para uma volta no carrossel...
O menino escolhe um elefante cinza, de cara simpática. É divertido o sobe desce previsível do carrossel. A brisa do final de tarde anima o elefante bobo e voador. Iupiiiiiiiiiiii! Eia, elefante bobalhão, orelhudo. Patético. E... o menino voa de volta para casa. A mãe alertou: hoje é dia de muito movimento na padaria. Sai muito tarde, lá pelas onze horas, meia-noite. Uma volta no carrossel e casa. Não me espera. Pega o Pedreira-Nazaré, lá na São Jerônimo. Olha pros dois lados quando for atravessar a rua!
A mãe ficou para trás. Atrás da máquina registradora. A temperatura do seu dia mudou. Sente alguma satisfação, mas não está feliz. Rodou a valer no carrossel e tomou guaraná com pastel de queijo naquela tarde reveladora, mas o mel do algodão doce de alguém que passava ao seu lado, caiu na sua camisa amarela e eternizou ali uma mancha...doce
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