No sábado, acompanhei um amigo romeiro até Icoaraci. Ele queria ver a chegada da Santa para a romaria fluvial. Meu amigo é romeiro meio de araque. É da barra. É rebento genuinamente pedreirense. ‘Vicici’ na corda. Só que agora, trabalha com ouro em Itaituba e quando vem por aqui se enche de pavulagem. Desta vez, quis porque quis se abalar até Icoaraci. Quis satisfazer algumas carências: rever o cruzeiro, a casa do poeta Antonio Tavernard, passear à sombra das mangueiras da Vila de Pinheiro, comer uma caldeirada na beira...
Feita a desobriga no trapiche, partimos para a recomposição de lembranças e depois de um farto repasto e umas quantas geladas, decidimos zarpar.
Meu amigo é gente do bem. Só que tem um problema. Não pode beber (até que pode. Não fica um porre chato nem malino. Aliás, fica até um porre consciente, tanto que o que vou contar agora, me foi relatado, com detalhes, por ele mesmo; mas fica logo bêbado e pra lá de despachado, engraçado e extraordinariamente descompensado).
Eu e meus meninos fomos de ônibus para a Vila Sorriso, bem cedinho. Ele foi de carro. Só que não me avisou. Daí, da feita que nos levantamos do restaurante, ele nos acompanhou. Subiu no Icoaraci-Presidente Vargas com a gente. No caminho, balbuciou meio sonolento: “amanhã venho buscar”. Perguntei o quê. “O carro”, ele disse. “Pô, deixaste o carro em Icoaraci”, ralhei. “E nem lembro onde larguei”, confessou. Depois, desandou a falar da devoção à Virgem de Nazaré. Contou a história de D. Fuas Roupinho, que nas suas caçadas pelas floretas de Portugal foi atraído por um veado para um precipício e foi acudido pela Santa, momentos antes da queda (minha avó tinha um quadro com esta cena em casa: o cavalo contorcendo-se no ar. O desespero do caçador. O riso cínico do demônio alado a planar sobre o vazio do precipício e a Santa Virgem Maria vencendo o mal).
A seguir, num repente, mudou o rumo da prosa e varou à margem do Murutucu, já contando a versão do caboclo Plácido. Tão confuso, quanto inaudível, foi baixando a voz e se entregando a um soninho. Me certifiquei estarem as crianças acomodadas naquele banco mais alto que os outros e me ‘interti’ apreciando a viagem, na paz. De repente, meu amigo despertou. Fez uma cobrança a si mesmo e, vexado, cedeu o lugar a uma gestante. Mal conseguia se manter em pé. Mas primou pelo cavalheirismo. Obsequioso, lembrou que íamos para a Pedreira e deveríamos pegar dois ônibus. “Desceremos no Bosque”, ordenou.
As poucos, foi sumindo no apertado do corredor, e quando atinei, meu amigo não estava mais no ônibus...
No outro dia, no almoço do Círio, ele me contou: viu umas árvores juntinhas, um bambuzal. Pensou que fosse o Bosque e desceu do coletivo. Na calçada ficou meio azuruote. “Cadê as grades? Cadê o muro? O Mapinguari?, Vai ver que desci na rua detrás”, convenceu-se. Não se afobou. Avistou uma parada coberta, largou sobre o banco a mochila (costume que trazia da mineração: andar sempre com uma mochila completa com as coisinhas do dia-a-dia, inclusive a carteira com dinheiro, documentos, cartões de crédito...) e se entregou a outro soninho. Lá pelas tantas, uma jovem senhora o despertou. “Onde estou?”, perguntou. “Na Augusto Montenegro”, respondeu a moça. “Indo ou vindo?”, inquiriu ele, com ar de extremada despreocupação. “Aí vai do senhor”, devolveu a zinha. “Tem razão”, rebateu meu amigo, “eu decido o meu caminho. E vice- versa”, filosofou. E ‘enchinou’ de novo.
Acordou milagrosamente munido de todos os seus pertences, aos primeiros raios de sol de um domingo, sem dúvida nenhuma, abençoado.
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