- Pra donde tu vais, Zeferino?
- Vou ali, já volto.
- Hoje, não é dia de trabalho não, menino!
- Não vou trabalhar não, minha mãe! Vou só ao varador preparar a armadilha.
- Sexta-feira da Paixão! Virgem Nossa Senhora!
- Amanhã é Sábado da Aleluia e nós precisamos quebrar o jejum...
A montaria escorregou macia no tejuco, banzou de bubuia em cima d’água. Zeferino pulou pra dentro, num salto ágil, com o leque do jacumão na mão. Deu um empurrão na caiçara, afastou-se ligeiro para o perau do rio e, com remadas rápidas, sumiu-se no meio do furo - xuá-xuá-xuá...
D. Marocas ficou em casa matutando. Sexta-feira Santa não era dia de se caçar não. Era pecado matar bichos na Sexta-feira Santa. Naquele dia, seu Valentim chegou da mata, com cachos de açaí às costas, estancou de espanto:
- Apois, Zeferino teve coragem de ir caçar no dia de hoje!
- Se teve!..
- É capaz de topar com o Curupira.
- Ainda outro dia, "Nhá" Fulô me contou o "causo" dum "muço" que foi pescar na Sexta-feira da Paixão e topou com a Mãe-D’água.
- Abusões!
Quando a montaria abicou no tijuco, do outro lado do igarapé, Zeferino pulou para um pau grande, deitado na barraca, que servia de ponte. Subiu pra ribanceira, atolando-se na lama, agarrando-se nos matos, com a espingarda nas costas. Entregou a alma a Deus, e penetrou no matão fechado.
Não estava com medo, não. Mas, caminhava hesitante, com sobrosso. As sombras do crepúsculo esmagavam a floresta. O canto sinistro das aves noturnas povoavam a solidão de assombrações e agouros.
Sem olhar para trás, com o coração aos pulos, escolheu uma boa forquilha de pau e preparou a armadilha, sapecando na espingarda uma grossa carga de escumilha. Ao menor estalido da folha, arrepiavam-lhe os cabelos, e um frio estranho pela espinha.
Medo? Mas, medo de quê? ... ele nunca tivera medo de nada!...
A luz hesitante da lua cheia escorria pelos galhos espessos da mata, sem clarear o chão. Os troncos secos, entrançados de cipó e embiras, erguiam-se para o céu, no labirinto do mato verde, como esqueletos sinistros.
Naquele cenário aterrador, Zeferino experimentou uma sensação estranha. Medo! Sim... um medo que ele nunca tinha sentido. Um medo não sabia de quê. Cerrou os olhos, transido de terror. O pica-pau martelava no quiriri da noite. Uma gargalhada estraçalhante de coruja abalou tragicamente o silêncio negro da floresta. Zeferino deu um grito e desembestou na carreira, numa alucinação, para a beira do igarapé, onde amarrara a montaria.
Na precipitação da fuga, tocou no cipó distendido da armadilha.
- Trac-pum!
Um grito danado de dor. Um bruto baque no chão. E Zeferino caiu, a carga de chumbo na perna direita, estrebuchando na lama viscosa da mata. Caiu que nem palmeira torada pelo corisco.
E a noite negra, cheia de assombrações, veio encontrá-lo desacordado, frio, atolado na lama, sob a iluminação pisca-pisca dos vagalumes.
Em casa de Seu Valentim, foi uma noite movimentada de atribulação. Com fachos nas mãos, meteram-se todos dentro duma montaria e foram procurar Zeferino na floresta. Rezando a "Salve-Rainha" até "nos mostrai", erraram a noite toda por furos e varadouros, por veredas e atoleiros, e só de madrugada, com os primeiros clarões do sol, foi que, caminhando por uma capepena na direção dum longínquo gemido, foram encontrar Zeferino numa poça de sangue, atolado no tijuco, ao lado do mundé.
- Castigo de Deus!
- Seu Valentim está pra dar café!
Desde aquele dia, Zeferino estava à morte.
Não houve mezinha que lhe desse jeito. Nem o pajé que chamaram conseguiu curar-lhe a ferida. Não havia mais esperança. Os parentes reuniram-se todos em casa de Seu Valentim. Fatalistas instintivos, quando viram o ferido ardendo em febre e a ferida a resistir aos primeiros remédios, o abandonaram aos azares do Destino.
- Se tiver de morrer, ninguém o salva!
Resolveram, então, esperar. O que tivesse de acontecer, aconteceria. E com resignação e serenidade esperaram a morte de Zeferino.
Os caboclos, acocorados no portal ou sentados pelos cantos da casa, "faziam quarto" ao moribundo. Uma vez por outra, o café corria a roda. O silêncio misterioso das solidões amazônicas apagava os ruídos tristes da casa humilde. De quando em vez, a dor de um gemido arquejante dava balanços monótonos na rede do moribundo. Não havia mais dúvida: Zeferino ia mesmo desta pra melhor.
- Xincuã já cantou no terreiro!
Há muito o pássaro pressago cantava horas a fio o seu canto de alegria: ¾ Tê-tê-tê-tê... No dia em que Zeferino adoeceu, porém, o bicho cantou como um agouro o seu canto de morte.
- Xin-cu-ã...
- Tesconjuro!
Xincuã viera avisar, Zeferino ia morrer.
Morreu.
Entre velas de carnaúba, o morto jazia no meio da sala estreita. O velho Valentim aproximou-se, com uma lentidão pesarosa, levantou o lenço de alcobaça que cobria o rosto lívido do filho e articulou um palavreado singelo de despedida. Depois, apertou a mão enregelada do defunto e exclamou a frase clássica daquela cerimônia cabocla:
- Adeus, Zeferino! até à outra vida!
Os demais parentes repetiram, com exatidão litúrgica, a despedida ingênua, dizendo as mesmas frases sacramentais.
- Adeus, Zeferino! Até à outra vida!
O enterro partiu.
Os que ficaram em casa - contentes de ficar! - vendo a montaria que levava o caixão sumir-se na verde curva do igarapé grande, atiravam-lhe de longe mãos cheias de terra. E a superstição de todos gritava que nem uma só boca:
- Adeus, Zeferino! Fica-te por lá mil anos e deixa a gente em paz!
- E de que morreu o Zeferino, Malaquias?
- Apois, o "muço" não sabe não?
- Um tiro de armadilha? Dizque...
- Axi! qual armadilha, qual nada, meu branco! Foi mau espírito! Zeferino, desde que foi caçar na Sexta-feira Santa, ficou possuído dum mau espírito! Sabe como é? "Espritado", patrão!
(Peregrino Júnior. Puçanga, in A mata submersa, 1960.)
Um comentário:
Vida de caboclo, mansa e dura, corajosa e assombrada.
Belo texto.
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