terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Crônica da semana - Raimundo Sodré

Não vou sair, não vou deixar este lugar



Hoje, é bem mais fácil de entender. Abro o Google Earth e num instantinho reconstruo a viagem que fiz desde os férteis barrancos do rio Acre até a indefinida foz do Amazonas. Na imagem, revisito os retorcidos rios ocidentais; a inesgotável bacia hidrográfica; o sufocante estreito de Breves; a imensidão marajoara; a mansidão do Arrozal; os acintosos espigões; a simetria britânica e a perdoável arrogância das torres do mercado de ferro do Ver-O-Peso... Belém.
A baía do Marajó nos deu as boas vindas com um furioso banzeiro que levava o Domingos Assmar a uma perigosíssima coreografia alternando-se em audaciosas inclinações a bombordo, a estibordo. E a gente enjoando, se desesperando. Mamãe cuidando. Acalmando. Até que, impotente diante da forças das águas, nos juntou os quatro pequenos no camarote e nos uniu em fervorosa oração.
Deus sabia que queríamos ser paraenses, e quando ouvimos a quebradeira do mato, quando sentimos o ronco dos motores suavizar-se num surpreendente desafogo, quando percebemos um deslizar cômodo e seguro sobre o tapete líquido do furo do Arrozal, paramos de chorar, e nos abraçamos felizes com a certeza de que chegaríamos naquela Belém que mamãe tanto falava. Naquele lugar mágico margeado por florestas, rios grandes, sonhos e desejos. Naquela terra prometida em que reconstruiríamos as nossas histórias e reinventaríamos a vida longe das ruas de seringa e dos enlatados imperialistas.
(A mais determinante seqüência, desde a partida naquele batelão de linha, lá no Xapuri, que trago na memória é esta: a saída daquele furor líquido da baía do Marajó, a reconfortante estaladeira de mato, a calmaria do Arrozal e... As torres do Ver-O-Peso).
Se alguém um dia me pedir para definir Belém, não vou ter dúvidas. Belém é a minha bonança. A minha paz.
Tudo conspira, né. Todas as circunstâncias contribuíram para que eu admitisse que Belém seria a minha redenção, o meu fim, o meu desprendimento, o meu suspiro de alívio (depois daquele frenesi, na baía do Marajó, então, Belém foi uma graça alcançada).
Desembarcamos no galpão Mosqueiro-Soure dizendo “é aqui” nesta beira de rio.
E foi mesmo. Meus momentos mais marcantes da infância, da adolescência, da juventude e agora, já fazendo a rima com o ‘enta’, foram sempre à margem desta baía.
Um beijo, um porre, um pensamento mau, um dinheirinho suado, uma desilusão, um assombro, um arrependimento, uma despedida, um reencontro, uma poesia, um palavrão, uma maldição, meu bem, meu mal, minha indiferença, o pôr-do-sol, o luar, a cachaça de Abaeté, uma nota no violão, a chuva fina, o amanhecer, os olhos farinhados de sono, as pimentas coloridas e o verde das folhas orvalhadas pela madrugada, o mistério das ervas, o imprevisível humor das ondas que às vezes vão buscar a gente lá longe, a brisa amiga e refrescante no final da tarde, a minha saudade e o sal das minhas lágrimas que rolam agora sem embaraço nenhum...
Certa vez, depois de algumas adaptações, e um casamento perfeito, debandei. Passei dez anos vagando por aí. Trairei Belém. Me apaixonei por Porto velho, tive um caso quase que irreparável com Altamira, me iludi com os apelos calientes de Manaus, destrambelhei completamente por Macapá. Mas um dia... Um dia voltei aos aconchegantes braços da minha cidade.
E daqui, não saio mais.
Na beira deste rio quero descansar. Um dia (não agora, ainda não) atendendo a um convite irrecusável da natureza, o que restar de mim, “é aqui” que gostaria que repousasse para sempre. Quero me misturar às águas deste rio e virar maresia, maré cheia, Acará, Guamá, Guajará...

2 comentários:

Fernando Amorim disse...

Olhos mareados agora...

Cássio disse...

Que saudade da lama gulosa da Doca, das vacarias da Jabatiteua, das porradas na Praça do Operário, das enchentes dos covões de São Brás, das filas do Cine Independência, dos barcos de cascos de geladeiras do Tucunduba, dos ratos nadadores da Dr. Moraes, das festinhas da turma da Bailique, da gordura do Cuca, da cafonice do TV Cidade, das roupas de griffe do Everaldo Lobato, das piadas sem graça do Kzan Lourenço, dos berros do Buraco, do desbotado canguru da Radiolux, do verde-limo do Dino das Superlojas, das tiradas do Bolso do Repórter, dos embalos de sábado a tarde do Zuca Brilhantina, dos shorts de duas bandas vendidos no Regatão, das calças de lycra da Makel, dos bombons afanados na Lobrás, dos gritos do Gelmirez no dia da Raça, do Alecrim chamando a secretária para dar um quilo de bombom aos candidatos a astro no Clube do Garoto, da mendiga da lata que tinha um caroço no pescoço, da Maria Garapé, das chamadas do Patrulha da Cidade, do pão massa grossa e do pão massa fina, do supermercado Metralhadora, do Armarinho Holanda que vendia sacos de chop, do saco de chop, do Armando Português que dividia o lucro com o freguês, do Pinduca cantando o pinto o quando nasce, das cafonices do Pierre, do Omar Cardoso, do Regulador Xavier, da Limonada Bezerra, quanta saudade, Belém!