quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Crônica da semana - Raimundo Sodré

O largo da Palmeira

A periferia de Belém alimenta a nossa saudade. Define os nossos ressurgentes calores subjetivos. A franja da cidade guarda em si pedacinhos adocicados da história de cada um de nós.
Mas o que nos identifica como coletividade, o que nos certifica como um conjunto de cidadãos orgulhosos é, evidentemente, o centro. Mais exatamente aquela fatia da cidade que se espraia a partir do Forte do Presépio e se acomoda no interflúvio que se impõe entre o rego do Piry e o alagado do igarapé das Almas (aquele trecho entre o Ver-o-Peso e a Doca).
Neste espaço mágico, visões e conceitos estéticos se encontram nos ‘éles’ de Lemos e de Landi. Geometria moderna e traços medievais se decompõem em pura poesia ‘concreta’. É um espaço plural. Repleto de jóias da criação.
Ali, também tenho os meus cantinhos e as igrejas têm um lugar todo especial no meu coração belemense.
Até um dia desses, a minha preferida era a do Carmo. Mas depois que eu vi a igreja da Sé restaurada...
São importantes, as igrejas, e para mim, elas se destacam não só pelo caráter religioso. Os nossos templos históricos ao mesmo tempo em que se esmeram em suntuosidades arquitetônicas buscando os céus, estabelecem uma linguagem terrena, abraçam crentes e pagãos com suas fachadas acolhedoras. Ao largo das igrejas, percebo uma certa indulgência para com nossos atos e intenções. É normal agregar-se a um grande templo, uma praça verde e libertária. E nela, são reveladas as emoções profanas (como o Fofó de Belém, do Eloy Iglesias) ou reiteradas a fé e a crença (como a concentração para o sacrifício da Corda, no Círio de Nazaré).
As edificações, portentosas e belas registram-se como
igrejas construídas e, como povo em eterna construção. Emergem da ancestralidade como símbolo de uma história santa e pecadora. Animam a nossa fé, e paradoxalmente, atiçam a nossa curiosidade e ratificam nossos medos (será que tem um menino de castigo, duro, com a língua pra fora, com a vassoura na mão porque queria bater na mãe, atrás da porta da catedral da Sé?).
Entendo que há um diálogo, uma energia edificante ladeando nossos prédios históricos.
O conjunto igreja do Rosário/ igreja de Sant’ana é para mim o exemplo mais eficaz desta integração entre as construções. Estão bem próximas. A igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos ergue-se numa esquina da Padre Prudêncio. Uma quadra depois, além do buraco da Palmeira, está a igreja de Sant’Ana. As duas são um brinco. Delicadas. Humildes e dispostas. Entregam-se sem receio à cidade. Na igreja do Rosário, me encanta aquela pracinha, à entrada, quase intacta, preservada, solitária, ordeira, quase um alpendre interiorano. Parece uma redinha da tarde pronta para embalar a poesia e para ouvir os nossos segredos.
Do outro lado do buraco, a igreja de Sant’Ana pressionada pelo ir e vir urbano. E é verdadeiramente mais urbana. A pracinha, dissociada da calçada, separada pela rua, é também, convenientemente, desatrelada da inocência. Embora respeite o gradil da igreja de Sant’Ana, a pracinha é alegre e libertina, algo como um brando arremedo da carioquíssima Cinelândia.
As duas igrejas, parece que se complementam em prodigalidades e carências. Existem para serem parceiras. São construções estética e socialmente siamesas. Necessitam de um diálogo constante. Eu não sou arquiteto, nem nada, mas se pudesse apitar alguma coisa, jamais separaria Sant’Ana da igreja do Rosário dos Homens Pretos. Jamais levantaria um muro feio e frio entre as duas. Jamais. Mesmo que para isso, tivesse que eternizar o antigo largo como o, já referendado, buraco da Palmeira.

2 comentários:

Artur Dias disse...

Eu trabalho bem de frente para a pracinha do Rosário, já que o nosso escritório fica colado na Igreja. Gosto muito das soluções para os desníveis, com degraus indo e vindo, como numa música, ritmando o passo de quem ali anda. Como eu tenho uma certa obsessão por degraus de pedra (desculpem a esquisitice), só tenho restrições a fazer em relação à lajota de ardósia escolhida para o revestimento do local. É que a ardósia é lisa, e vira um sabão depois das chuvas. A praça é freqüentada por pessoas idoas e crianças pequenas, e o piso não é adequado a esse público.

jorge disse...

Os engenheiros desconhecem as leis do atrito e acham lindo pedras lisas....