Crônica da semana - Raimundo Sodré
Estive fazendo umas continhas aí. Classificando, restringindo, alargando, desconfiando, confirmando, descobrindo. Certifiquei-me, inconformado, que não conheço ninguém que mora em edifício. Verdade! Não contabilizo um único amigo que more nas alturas. Digo prédio mesmo, daqueles que dá pra ver a baía lá de cima (Natália Lins ou blocos geminados que permitem acesso somente por escadas, não vale. O que vale é elevador, mesmo que seja daqueles com portas pantográficas). O meu séquito limita-se aos que se viram ao rés-do-chão. É todo mundo habitante do térreo (alguns, é verdade, ‘terráqueos’ de esquinas chiquerérrimas tipo Doca...Quer dizer, não exatamente Doca, e nem, absolutamente, esquinas, mas perto. Aquele perto que já dá pra se incomodar com o som dos carros tunados, com o chiliquito de playboys amantes do tecnobrega baiano e com o mix de aroma floral de detergente nos fins de tarde).
E antes que eu desembeste no texto, vou explicar que diabos vem a ser ‘porta pantográfica’. Bom. É um tipo de porta de elevador que a gente encontra nos prédios mais antigos da cidade e que tem o formato de pantógrafo.
?? Aloô!
Se não ajudou, a explicação, é só lembrar a última vez que a gente se dignou a responder a uma ‘notificação extrajudicial’ e teve que se dirigir a um escritório de advocacia para limpar o nome por causa daquela continha que a gente ‘esqueceu’ de pagar, no natal passado (e que virou um contão impagável). No geral, estes escritórios instalam-se em salas precedidas pela
sinistra (imprevista, angustiante) porta pantográfica (e quem acompanhou o sobe-desce do Angel Heart, personagem vivido pelo ator Mickey Rourke em “Coração Satânico", sabe muito bem o porquê do ‘angustiante’).
Houve uma época em que os produtos vendidos pelos camelôs da cidade tinham pouco de eletrônico e muito de mecânico. Quem nunca comprou, numa esquina da João Alfredo, um multi-utilitário Kimbar? Que era ralador, descascador e cortador, ao mesmo tempo, de frutas e legumes (e de dedos, inclusive). Hoje seria comparado ao multiprocessador, mas na época apelava para o manual mesmo, para o muque e, olha que pecado: tive a deselegância de presentear a mamãe com um desses, num aniversário dela. Tadinha. O mesmo camelô se arriscava pela química e vendia uma gosminha que era lambuzada no desenho (em qualquer desenho) e que era depois passado para o tecido (qualquer tecido), caderno...funcionava como um decalque e ficava feinho que só ele. O mesminho dito cujo (lembro dele até hoje, porque tinha umas falhas de dente flagrantes que lhe alteravam a dicção), nos oferecia também, o pantógrafo.
O pantógrafo seria o pai do AutoCAD. É um equipamento de madeira, sanfonado em xis, que serve para alterar as dimensões de um desenho, ou seja, mexe com a escala da imagem. Cheguei a usar uns bons nas minas de cassiterita do Amazonas, mas nada a ver com aquele do camelô que só trazia frustração, não traçava e não modificava o tamanho do mundo um tiquinho assim (tive um de camelô também). Falo deste instrumento para os meninos nas aulas de desenho, e eles, hoje, com o auxílio luxuoso da tecnologia, se abrem.
Belém, não é uma ilha. Há o rio Guamá cercando aqui, a baía do Guajará, abarcando ali, mas tem a BR integrando acolá. De cima, Belém é bonita que dói. Sei disso porque despenquei (quase que literalmente) nos braços desta cidade várias vezes, chegando num vôo da Taba. Do alto de um prédio bem localizado, mesmo, nunca vi Belém. Minha turma não se animou a subir pra riba. Como ‘desconti’, porém, discirno uma ou outra luzinha do natal, quando subo no jambeiro aqui de casa
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