Manoel, o audaz
Raimundo Sodré
Há alguns anos, lá na Praça da República eu vi o Delcley Machado tocando a música “Manuel, o Audaz”, do compositor mineiro Toninho Horta. Fiquei impressionado com aquela apresentação. Primeiro porque o show era ao ar livre e, já sabe né, com direito àquelas limitações de infra que a gente conhece quando o poder público se anima para ofertar um issozinho de bom para o povo. Mas olha só, benza Deus este menino Delcley. Ele foi primoroso, impecável na interpretação. Tocou com uma sensibilidade, com uma entrega. Mergulhou na melodia e nos apresentou alguma coisa que eu acho ser um pedacinho do céu. (E para não ser injusto na lembrança, acompanhando a encantadora guitarra e juncando de flores os solos fenomenais do Delcley, naquele dia, estava uma galera feríssima da música instrumental paraense).
Além do talento dos músicos que se doavam à pura arte, ali no anfiteatro da Praça, a melodia deixou marcas. Eu já conhecia outras versões, inclusive enriquecida com um belo poema, na voz do próprio Toninho Horta, mas naquele dia, a música daquele jeito (só tocada e com aquela harmonia mágica do Delcley), me veio com um calor especial. Calor de pai. Bateu, sabe. Fez tóim óim óim aqui dentro da minha caixola. Liguei o Manuel audaz da canção, ao Manoel meu pai, lá do Xapuri.
Sei pouco sobre ele. Parte do que sei de meu pai é o que minha mãe contava quando eu era pequeno. Depois que cresci, procurei saber mais. Fiz duas viagens ao Xapuri. Na última delas, passei cinco dias no seringal em que nasci e acabei participando da rotina do campo (querendo ser audaz), acordando cedo, espalhando ração pelo terreiro, chamando os bichos pra comer: thu thu thu thu thu (e vinha pato, pintinho, galinha, até porco, cabrito, bode apareciam no quintal atrás dum petisco). Experimentei o desjejum do seringueiro montado com carnes, caldos e o que mais desse ‘sustança’. Fui pra lida. Pilei arroz, tirei mourão, colhi o milho (e sabia que isso, esse usufruto de uma rocinha, um carvão aqui, uma casa de farinha acolá, esse mínimo para viver como bom cristão era uma conquista grandiosa do homem da floresta. Muita gente tombou sob a mira dos poderosos para que eu estivesse ali colhendo folhas da hortinha nos fundos do barracão. Por causa dessa vitória histórica, eu fazia aquilo envaidecido, orgulhoso do meu povo acreano). Ganhei as ruas de seringa, nos altos dos igarapés, e risquei umas quantas árvores pelo caminho. Em cada uma delas, deixei fincada minha tigela na espera dos gotejos preciosos que a nós são oferecidos pela abençoada, pela laureada Hevea brasiliensis. Proseei com meus tios, meus primos, ao anoitecer; ouvi a cotação da borracha pela Rádio Nacional de Brasília e como um bom seringueiro, me aquietei antes do Cruzeiro do Sul tombar no horizonte. Adormecia sempre cansado e pensativo, acompanhando a fumacinha e a tisna que a lamparina desenhava no telhado.
Depois do seringal, passei uns dias na cidade e conheci mais histórias de meu pai. Soube das traquinagens, dos desafios que ele enfrentou. E da batalha que não conseguiu vencer. Histórias fortes. Comoventes.
De homem forte que era, definhou. Morreu naquelas terras longes chamando pelos filhos.
Quando deixei o Acre, trouxe na bagagem meu pai de verdade. Um pai que eu sempre quis ter. Um Manoel audaz que aplicava até injeção e tomava uma bebida chamada leite de onça. Um pai que mesmo na ausência, me ensinou (ou fez nascer em mim, sei lá) esta vontade de ser pai.
Amanhã, a melodia de Manuel, o Audaz, do jeito que o Delcley tocou lá no anfiteatro vai trazer de novo, meu pai pra mim (e vou me confortar com o pouquinho de Manoel que sou). Na hora do almoço, pra abrandar meu coração, vou ficar só ouvindo os meus filhos: “pai, tal coisa assim assim?”, “o que acha disso, pai?”. Pai, isso. Pai, aquilo. Pai...E não vou me cansar de ouvir... “Pai”...
Preciso ouvir.
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