quarta-feira, 28 de abril de 2010

Crônica Remix-Raimundo Sodré

É bom estar com vocês

Eu sempre fui um sujeito paciente. A minha relação com o tempo foi, constantemente, algo de obediente e respeitosa espera.
De uns anos pra cá, é que destrambelhei, adquiri uma cisma com o tempo. Inventei um tal estado de ‘cubo de gelo’.
O gelo, a gente sabe, não fica totalmente imerso na água (ou numa generosa dose de uísque como esta que está aqui na minha frente a me seduzir). Uma parte dele se sobressai e se expõe a brisa e a temperatura ambiente. A outra, a maior parte, mergulha para o silêncio líquido. Olhando ali para o copo de uísque, dá pra perceber que o gelo é mais substancialmente confinado, do que naturalmente livre. Ou seja, tá mais pra lá do que pra cá. Pois é, de uns tempos pra cá, me vi convencido da minha situação similar a do cubo de gelo. Depois dos quarenta, achei que tinha mais tempo para trás de mim, no passado (imerso nas líquidas lembranças) do que para frente. ‘Empinimei’ que não haveria mais a idéia do ‘longo prazo’. Admiti que o meu horizonte se encurtara e eu não podia esperar tanto, como antes. E a paciência, sem paciência nenhuma, foi fugindo de mim.
Aí, virei, mexi e pintei os canecos. Tudo numa pressa imponderável. Por essa época, fiz o vestibular para Geologia, comecei a estudar, fiz esforços sobre-humanos para ser um operário de verdade, e, numa direção radicalmente oposta ao chão da fábrica, comecei escrever a coluna Bom Dia, para O Liberal. As 24 horas do dia, então, é óbvio passaram a ser pouquinha coisa para mim. O tempo, o daqui pra frente, era para mim, uma coisa mínima, resfolegando, falindo. Precisando urgentemente ser reanimada. E nada mais sobre este tempo raquítico, falarei.
(Porque hoje, lendo sobre a história da Terra, me deparei com alguns toques que vararam o século 18 e me alertam sobre o caráter ilimitável do tempo. Sobre as propriedades inesgotáveis das eras, sobre a possibilidade física da eternidade).
Mas naquela época, havia a urgência, o perrique, o comichão e tanta pressa fez a minha intolerância bater de frente com uma muralha poderosa e destruidora. Me arrebentei todo. Parei de estudar, o trabalho não me foi mais possível, e a vida se perdeu na ‘sensaboria dos dias’.
A única coisa que me foi dada, o único prazer, a mim permitido, foi o ato de escrever. Continuei aqui na coluna, rompendo barreiras Reinterpretando o tempo.
(E que lenda bacana é essa que o historiador e jornalista holandês Hendrik Van Loon nos conta: “...Uma vez, a cada milênio, um passarinho vem a uma rocha para afiar seu bico. Quando a rocha tiver sido assim totalmente desgastada, então, um único dia da eternidade ter-se-á escoado”).
Hoje faz 3 anos* que escrevo aqui para a coluna Bom Dia. Desde março de 2006 estou aqui, rente-como-pão-quente, dividindo com os leitores as minhas dores, as minhas alegrias, as minhas ilusões e certezas (tudo temperado com uma pitadinha de mentira, né, porque o cronista, assim como o poeta, sabe-se, é um fingidor).
E escrevendo, vou exorcizando os meus diabinhos, vou reconstruindo conceitos sobre o gelo, sobre a rocha, sobre o passarinho...Vou me redimindo e, vez por outra, me sinto bem próximo, bem pertinho mesmo de aprender esta ou aquela lição (mas ainda tentando).
Eis então que dei uma desacelerada. Me inclino, agora, a entender que o tempo não geme nem convulsiona. O sol só vai se apagar daqui a uns 7 bilhões de anos e até lá, resistirão ainda rochas, passarinhos e euzinho aqui, rascunhando um futuro inesgotável (acho que quebrei o gelo e recuperei a minha paciência).
É bom estar com vocês aos sábados. E porque é bom, sei que temos tempo.

* a crônica é do ano passado

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