quarta-feira, 21 de abril de 2010

Crônica remix-Raimundo Sodré

Borboleta, Lirismo e o UFPA-Pedreira

De 2004 pra cá, dei de estudar. Depois de 22 anos longe da escola (terminei o curso de Mineração na gloriosa Escola Técnica, em 1982), passei para Geologia, na Federal.
Uma nova situação, uma pegada que há muito eu não encarava: acordar cedo, dormir tarde, encarar os chiliquitos dos professores, partilhar inquietações com os meus jovens colegas, ter com a pesquisa, com o dever de casa...Ai, meu Deus, a prova na próxima semana! Com o trocadinho para o lanche no Ver-o-Pes’inho.
Soma-se agora, à minha lida diária, zelar para ser, daqui a alguns anos, um profissional que vai ‘cuidar das feridas da Terra’.
Uma batidinha rotineira que me revela a dor e a delícia de ser estudante. Principalmente a dor, quando tenho que andar de ônibus: é comum eu ser esculhambado por causa da meia-passagem. Acho que por causa de uns poucos, raríssimos cabelos brancos salteados entre o cabelo e a barba.
(E eu nem vou perder tempo dissertando sobre o direito que tenho sobre este benefício ou ratificando este direito com a minha participação nos movimentos pela conquista da meia-passagem na década de 1980 – eu estava lá na frente da casa do governador me batendo com a tropa de choque da PM naquela noite de outubro), somente para atenuar o drama, porque o certo, é o mau humor do cobrador quando apresento a minha careta na carteirinha da CTBEL.
Vou considerar, então, que a marcação não é só comigo. Uns quantos estudantes passam aperreios nas mãos dos cobradores, todo santo dia.
Mas taí, dia desses, deparei com as delícias. Acostumado com uns balbucios enfezados que imagino (não procuro discerni-los) do tipo “Pô, tamanho um velho e pagando meia!” ou “vai te aquietar, velho, vai tirar a gratuidade!”, dia desses, tive uma surpresa, no UFPA-Pedreira. Ao mostrar a minha carteirinha, fui recepcionado com o grunhido de sempre. E como sempre, pequei as moedinhas do troco e passei com mais de mil pela roleta sem dar trela pr’aquele ciscado. Eis, então, que, sentado ali, ao pegado da cadeira do cobrador, fui pouco a pouco, decifrando aquele zunido.
Ele dizia “bom dia, bom dia”. A cada um que, como eu, passava apressado pela borboleta. “Bom dia”. Sem discriminar ninguém. “Bom dia”. Todos eram afagados com o cumprimento matinal do cobrador. “Bom dia”. Só que ninguém percebia isso. Diluíam-se todos no interior do ônibus com a falsa lembrança do costumeiro esculacho. Mas ele, insistente (e acho até que consciente de sua inverossimilhança) “Bom dia!” ao trabalhador, a dona de casa, ao estudante...Legal, né?
Mas a verdade é que senti, no cobrador, um certo constrangimento (expresso no estribilho reprimido) como se estivesse subvertendo uma severa ordem. Enquanto que dos passageiros, me chegava o ar de pesada submissão: cicatrizes incuráveis de nossos dias. Pobres de nós tão familiarizados com a barbárie urbana, olha lá, quando de uma horinha abençoada como essa, passamos batido.
E lembrei de uma outra subversão de há alguns anos, no Pedreira-Nazaré. Havia por lá, um cobrador dado à poesia. Fazia as trovas e as espalhava pelos quatro cantos. Quando a gente entrava no ônibus e dava com os versos, o clima já ganhava uma leveza, uma paz. A cena apelava para a reverência quando ao final de cada quadrinha, a gente chegava ao subscrito “assinado, o cobrador”. E de pronto, a gente ligava o autor a obra. Ele, exibindo sempre um sorriso livre, sem culpas.
Esse, não durou muito. Depois de um tempo, sumiu das linhas de ônibus de Belém. Perturbou a ordem com seu lirismo. Uma pena, uma pena!

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